terça-feira, 20 de março de 2018


Biqueira*

Eu sou tudo.
Eles dizem que sou nada.
Que vou ser nada.
À parte disso, boicotaram todos os meus sonhos.

Janelas do meu barraco.
Do meu barraco de um do milhões que você só imaginou
( E se pudesse ver, o que veria? )
Dais para o mistério de uma rua feita de pontes cruzadas constantemente
                                                                              [por sonhos esquecidos,
Para uma rua inacessível a nenhuma pavimentação,
Longe, impossivelmente longe, esquecida, desconhecidamente esquecida,
Com o cheiro do esgoto por baixo das pontes e palafitas.
Com a chuva a por umidade nas paredes e o povo em abrigos,
Com o Governo a nos prometer fundo e nós tomando na cara.

Estou hoje chapado, como se fumasse para esquecer.
Estou hoje lúcido, como se não tivesse fumado,
E tivesse problemas para resolver,
Senão uma loucura, tornando-se este barraco e este lado da ponte
O point onde bonde cola, e o corre começa
Fritando minha cabeça,
E o papel sacudindo meus nervos e rangendo meu dentes.
Estou hoje cansado, como quem trabalhou, estudou e bebeu.
Estou hoje dividido, entre a lealdade que devo 
À Biqueira do outro lado da rua, como coisa preocupante por fora,
E à questão do traficante ser meu amigo de infância como coisa salvadora
                                                                                                    [por dentro.

Tentei de tudo.
Como não tinha ensino, talvez tudo fosse equivocado.
A aprendizagem que me deram,
Foi sucateada desde o começo
Fui até a escola com grandes propósitos.
Mas lá só encontrei opressão e preconceito.
E quando percebi, já havia sido expulso.
Saio da janela e sento no sofá. Começo a viajar!

O que serei eu, eu que nada tenho?
Ser o que quero? Mas quero tanta coisa!
E há tanto que querem tantas coisas que não há tantas coisas para se querer
                                                                                                             [assim!
Esforço? Neste momento
Milhões de trabalhadores saem ao sol com sonhos simples como o meu.
E o sistema não poupará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá aposentadoria e nem ajuda para o pão.
Não, não creio no governo.
Em todo resto do mundo já se fala sobre a importância do programas sociais.
E eu que vi minha mãe comprando coisas com o Bolsa Família, vou ser hipócrita?
Não, não creio em mim.
Em quantas palafitas e favelas
Não estão nessa hora jovens como eu, sonhando.
Quanto sonhos honestos e sinceros -
Sim, verdadeiramente honestos e sinceros -,
E quem sabe realizáveis.
Verão a luz do sol real traduzido pelo ouvido da gente?
O mundo nasceu para conquistarmos
E não para no diminuir.
Tenho sonhado mais do que Luther King, sonhou.
Tenho apertado ao peito mais humanidades do que Mandela.
Tenho feito filosofias em segredo que nem Mbembe escreveu.
Mas sou, e talvez sempre serei, o maconheiro.
Ainda que mantenha a lucidez.
Serei sempre o vagabundo.
O que usava drogas.
Serei sempre o que pegou a última grana e comprou de brau.

E foi se divertir no chorinho.
Mandar uns free com os moleques.
Crer em mim? Não, em nada.
Derramo a 29 ardente sobre a garganta.
O seu pó, sua bala, o papel que se encontra debaixo da língua.
E o resto que seja usado com prudência para não ter overdose, se tiver, morremos
                                                                                                                        [fritos.
Escravos do Sistema.
Sonhamos com o mundo antes de nos levantar da cama.
Mas acordamos e ainda é escuro,
Levantamos-nos e temos que enfrentar ônibus cheio,
Saímos de casa e a violência do Estado nos rodeia.
Nos ônibus, nas filas, nos impostos.

(Drope um doce, pequena
 Drope um doce!
 Olha que não há viagem mais interior que essa.
 Olha que nenhuma religião te conectara com você mesmo, mais do que as drogas.
 Drope, pequena suja, drope!
 Pudesse eu ter dropado com a mesma idade com que dropas.
 Mais foi tarde, só aos dezenove tive minha primeira viagem.)

Mais ao menos ficam as lembranças
A loucura de escrever tudo isso aqui,
Algo que parecia impossível.
Mas ao menos consagro minha poesia ao meus,
Que muitas vezes foram esquecidos por padrões seus.

(Tu que persegues, que não tem argumento e por isso persegues,
  Ou filósofo grego branco, concebido como grande pensador.
  Ou gládio romano, impossivelmente herói.
  Ou grande Cabral, descobridor de nossas terras.
  Ou princesa abolicionista, feita de equívocos.
  Ou ditadura militar do tempo dos nosso pais.
  Ou um bolsominion moderno - não concebo outro termo -
  Tudo isso, seja o que for, se pode ser
  Não seja!
  Meu coração é um balde de sonhos.
  Como meus antepassados eu canto,
  Com saudades da terra amada.
  Chego a janela e vejo outras palafitas.
  Vejo as tábuas velhas, as pontes quebradas,
  Vejo as crianças tomando banho na água suja,
  Vejo os cães que latem
  E tudo parece simples.
  E tudo é equivocado, como tudo.)

Roubei, amei e até trafiquei,
E hoje não há universitário que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um a hipocrisia e a mesquinhez e o privilégio,
E penso: talvez nunca roubaram, nem amaram, nem traficaram.
(Porque é possível fazer tudo isso sem querer fazer nada disso.)
Talvez tenha acontecido apenas, como a polícia apreendendo armas.
E o que é a polícia, se não a própria fornecedora.

Fiz de mim o que deu.
E o que deu, estou satisfeito.
A roupa que visto é largada.
Conheceram-me como delinquente e não desmenti e perdi-me.
Quando fui pego.
Estava em uma cela,
Rodeado de bandidos, chapados
Com o beck que tinha bolado.
Dormi num canto com outros vinte
Numa cela pequena.
E vou escrever está história para provar que eles existem.

Essência crucial desse governo corrupto,
Quem me dera poder salvar toda a quebrada,
E não ficasse sempre na Biqueira da frente.
Fumando beck todo dia,
Como um rastafári fervoroso,
Ou um cracudo que todos rejeitam.

Mas o Dono da Biqueira chegou.
Olho-o como se fosse a última vez.
E o desconforto de perder o salve.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele de troca de tiros, eu de bala perdida.
A certa altura, mataram todos os que conhecemos.
Depois derrubarão todas as palafitas que moramos.
E as gírias que usávamos.

Sempre um de frente por outro.
Sempre erra e nunca com razão.
Sempre tão inútil quanto o outro.
Sempre tão excluído como a imagem que lhe representa na televisão.

Mais um menino chegou a Biqueira (para comprar pedra?)
E a realidade é escancarada em minha cara.
Levanto desacreditando no que vejo
E resolvo registrar em verso o que vocês não acreditariam.

Bolo um beck e penso no que escrever
E sinto o gosto leve sem amônia,
Contemplo a fumaça, a viajar
E chapo, num momento único,
A calma de todas as ansiedades.
E a consciência de que o sistema permanece em consequência da nossa passividade.

Deito-me no sofá.
E ainda fumo o baseado.
Enquanto existir maconha, continuarei queimando.

(Se eu casasse com a filha da vizinha
 Talvez já tivesse um filho.)
Viajo e levanto do sofá. Vou à janela.
O menino saiu da Biqueira (entocando as drogas dentro da bermuda?)
Eu o conheço: o chamam de Sombra sem saberem seu nome.
( O Dono da Biqueira me olha.)
Me olha como se não falasse nada.
Então gritei-lhe, ó menino!, e a Blazer preta
Passou veloz e sem vê-lo e o Dono da Biqueira correu.


Rafael Vaz.


















CAROL

 Você vai me dizer que eu não sei cantar. Talvez tudo tenha  que um dia se mostrar. Tua vida se encontrou com a minha, em plena  multidão, v...