quarta-feira, 28 de dezembro de 2022


 Na busca constante de se entender e procurar entender o mundo onde vive, é que Rafael Vaz começou suas primeiras experimentações com as palavras. Paraense da cidade de Altamira, sua alfabetização começou autodidata andando com sua mãe pelo Centro da pequena cidade e perguntando o que eram as placas e fachadas das lojas com aquela diversidade de cores e fontes. Daí pra frente, sua vida foi apenas leituras. Encontrou nas letras as explicações e significado para quase tudo que provocava, e assim veio a vontade de manter-se em curso com a formação e o conhecimento. 

Ainda jovem, mudou-se para Goiânia para cursar faculdade. Ainda sem muitos amigos, começou a registrar suas experiências em um caderno, como um diário. Entre chateações por estar distante de Altamira, e as novas relações encontradas em Goiânia, surgiram os primeiros poemas deste poeta, que no início falava de suas saudades da terra natal, assim como de todo o deslocamento de ser estrangeiro à nova cidade. Que não só era estranho por ser capital, como tinha uma cultura totalmente longe daquilo que trazia consigo na bagagem. 

Para saber o que queria e escreveria, passou por muitas experiências e como um novo mundo, desbravou e conheceu as ruas, becos e lugares da cidade, criou um relacionamento com as paredes e os pixos falavam consigo. Como um retirante, sobreviveu na capital através de empregos formais, de cargas e serviços gerais. Morou na rua onde encontrou sua verdadeira poesia e o que estava disposto a contar. Transformou-se então no poeta, e passou a registrar nas paredes e folhas seus poemas e sua presença no campo vivo que é a cidade. Foi ao submundo, e conheceu os ilícitos e proibidos, drogas, moribundos, cracudos, prostitutas, na noite formava sua família de conhecidos, suas conexões de sobrevivência na noite pacata da selva de pedra goiana. 

Quando cansou-se, partiu pela vontade a outros estados e cidades. Acompanhado ou sozinho, precisava ver para crer, nas verdades que se diziam por aí, e registrava toda sua experiência para que aqueles que lessem pudessem acreditar no que via.

A arte passa a ser motivação, motor, alimento. Passa a se dedicar simplesmente à sua produção e muitas vezes é só o que lhe sobra e permanece pelas casas de amigos que o recepcionam por um tempo, para se limpar e acomodar-se. Torna-se peça viva da cidade, transborda sua poesia em lambes e pixos pelas paredes.

Biqueira é fruto dessa época. Diego El Khouri então resolve convidar Rafael Vaz para publicar na Editora um livro de poemas autorais. Dava-se a largada para a realização do que foi sonhado. As poesias haviam se transformado durante esse tempo e o livro então chega com uma ideia já bem pensada e então surge Biqueira, o primeiro livro de poemas autorais de Rafael Vaz.


Biqueira de Rafael Vaz é um livro que pela capa já nos mostra por onde vamos passear por esses poemas. Uma pessoa tem em suas mãos uma latinha, onde está o título do livro. O corpo se prepara para dar seu primeiro trago, assim como nós que abriremos as páginas dessa viagem. Uma imagem muitas vezes censurada e negligenciada por nossos julgamentos. A capa é do próprio autor Rafael Vaz, com a diagramação de Jackson Abacatu e a diagramação do miolo fica por conta de Fabio da Silva Barbosa. Lançado no segundo semestre de 2021 pela Editora Merda na Mão. A apresentação foi feita também por Fabio da Silva Barbosa, que conta-nos como conheceu Rafael Vaz e iniciou essa parceria que além do livro conta com a apresentação do autor no programa de rádio “Aleluia Nunca Mais, A Trilha Sonora do Fim do Mundo” pela Rádio Rota 220.

Algumas imagens de entorpecentes iniciam nossa viagem. O título do livro sempre busca nos levar e falar desse lugar. De passagem e permanência, mas ao mesmo tempo de medo e morte. Biqueira é uma gíria popular para “boca de fumo”, o lugar onde são vendidos os entorpecentes. Os poemas do livro são as drogas que o autor repassa e espera que o leitor chape durante sua leitura. Começamos o livro com a frase “Acordo de manhã, meu despertador é o Sol…”, Rafael Vaz nos localiza na história, o ínicio da sua viagem, este lugar onde todos participam, policiais, moradores de rua, traficantes, crianças, jovens, famílias, rap… Todos tentando ser FREE. A realidade nua e crua é apresentada, não teremos liberdade e o risco sempre estará nos esperando. E o autor não esconde também sua participação neste cenário de guerra. Já nascemos prontos para isso desde criança e caminhamos “chapados” pensando como chegamos aquilo. Artista Visual, aqui Rafael Vaz, não tenta colorir ou pintar de cores coloridas a realidade, tudo é muito cinza e banhado de sangue. Sempre nos revelando algo que sempre é escondido ou maquiado, o poeta acredita que não é só por ele, afinal “carrega outros vinte loucos” consigo. Alguns deles devem ter rasgado o véu da verdade, é o que sobrava quando se tinha apenas uma caneta e um caderno nas mãos. Para o autor é uma questão de sobrevivência, “todos os dias eles nos matam, todo dia nós nascemos”. A vida não para e no dia seguinte continua a luta pela sobrevivência, os poemas não descansam, a luta para comer e permanecer vivos é feita todos os dias, entre as trincheiras criadas pelas relações humanas. Temos também poemas que contam algumas cenas, passadas em Altamira-PA, cidade do autor Rafael Vaz. Histórias dessas duas cidades (Altamira-PA/Goiânia-GO) se misturam para contarem os mundos e as relações pelas quais o autor passou, sempre entregue a esta parte da sociedade que vive à beira e sem eira. Algumas mortes foram necessárias para que o poeta nascesse. "Fazíamos piadas das desgraças.” Percebemos que a Biqueira estava sempre presente no cotidiano do poeta, a busca por entorpecer os sentimentos durante a realidade macabra, e ao mesmo tempo as amizades e amores criados nesses lugares, “causa, destino, coisas sem nexo, que façam sentidos em mim.” O autor é culpado e também culpa os outros, mas busca dentro de si, sua própria delicadeza, ele também sabe que pode agredir. 

Cada poema parece uma ida à Biqueira, uma história retirada desse lugar, do momento desses encontros. Alguns passam muito depressa, outros permanecem para usarem ali mesmo e entre viagens e diálogos, criam laços de amizade e sobrevivência. O autor parece ser um deles, e conhecemos através do poema que leva o título do livro. Biqueira é uma releitura do poema Tabacaria de Fernando Pessoa. Nessa versão vemos a relação do autor com a Biqueira, este lugar perigoso para comunidade, mas que muitas vezes é o único lugar para muitos jovens socializarem e criarem suas cadeias de relações. Nas palafitas de Altamira ou no Centro de Goiânia, o autor mostra que algumas relações podem se repetir, diante da realidade que escancara diante de si. É o maior poema do livro e nos situa novamente no caminho do livro. Voltamos e o poeta nos conta como cria, qual o efeito da poesia em seu ser, “ser artista é sentir o mundo.” É um ser em construção, as drogas levam-o a se conhecer, em entrar num estado de introspecção. Muitas vezes é difícil encarar a si mesmo e então questiona seus poemas e suas ações. 

A vida é um acaso, o autor sempre nos avisa. Se perde e se aventura pelos relacionamentos, e tudo mata, “Todos os poetas. Matam, matam, matam,” mas o gozo é complacente, e ele também goza “é anunciação do poeta”. Sempre tão chapado que os interesses imediatos são as principais vitórias do livro. E enfim, acompanhamos o autor em seu último trago e nos deixa o principal aviso.

“ Os poetas bons estão na boca do povo. Os melhores estão morrendo em suas casas.”


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