quarta-feira, 28 de dezembro de 2022




 

TEXTO SOBRE A OBRA CASA-PELE DE LUCÉLIA MACIEL

A instalação de Lucélia Maciel, traz em sua visualidade uma variedade de garrafas que trazem uma dinâmica ao olhar do espectador, que se entrega à demora para poder ver o que cada uma pode trazer. O couro trabalhado, reveste as garrafas dando a todas a aparência de lamparina, mas aqui vista como casa. O couro traz as costuras à mostra como uma cicatriz. Lembrança física das memórias. A Casa Pele. Em alguns, é possível ver inscritos feitos no couro, pelo interior da garrafa. Memórias Escritas. Algumas garrafas trazem em seu interior, punhados de terra que servem de base para os cordões umbilicais que se apresentam como destaque. Memórias Nascidas.

Vamos aproximando-nos desses objetos, e de repente, somos fisgados por um mundo. Fazendo do Alívio. No meio do Sertão Baiano, onde o cheiro de querosene invade-nos os pulmões e a luz das lamparinas, iluminando as histórias, do tempo que as coisas trazem em suas aparências e significados. 

As garrafas, este objeto que a humanidade popularizou por poder carregar os mais diversos líquidos. Sejam para nos hidratarmos ou nos aquecermos, são tragos por Lucélia, como recipientes para as memórias, as ancestralidades e seu próprio corpo. Os cordões umbilicais encontrados dentro do recipiente postos sobre a terra, tragos à luz, remete-nos à lembrança de uma nova vida que é iniciada, mas que traz na representação a lembrança de uma ancestralidade. Segundo a artista, é uma tradição em sua família, o enterro dos cordões umbilicais dos recém-nascidos, inclusive o seu. Mas em sua atitude, a artista troca os gestos de enterrar, que em simbolismo nos remete ao elo que é criado entre o recém-nascido e a terra que o irá criar, e une dois em um recipiente onde podem ser constantemente visitados e revistos. 

A terra da Fazenda do Alívio, que cobre o cordão de Lucélia Maciel, hoje levanta as gerações posteriores, como potência e prova da vitória de seus antepassados, o seu trabalho todo permeado por essa lembrança que a mesma carrega desde seu nascimento e posteriormente com mais intensidade depois de sua mudança.

 As lembranças daqueles que deixam suas terras natais para uma nova experiência em um outro lugar. Carregam consigo sempre o pedaço mais especial dessas histórias vividas e suas palavras sempre serão em nome de seus ancestrais. Casa Pele, nos mostra principalmente o corpo da própria artista que se multiplica, mas em seu interior carrega a história desse lugar, que em diversos pedaços, se encontram em cada um de nós, que um dia nos sentamos a beira de uma lamparina e com apenas os barulhos que  própria natureza produz, ouvíamos a história dos mais velhos.

Histórias essas que se encontram perdidas ou abaladas por uma oralidade perdida, pois não se conversa mais como era quando só havia lamparinas, hoje nossos olhos ocupam outros espaços, enquanto nossos ouvidos tentam se concentrar em algo que alguém nos diz do nosso lado. E deve ser por isso, que alguns mais velhos passaram a guarda as lembranças, sejam as enterrando ou as colocando dentro de garrafas de vidros, nos lembrando que a memória é fator essencial e fundamental para nossa vida. 

A memória que é retomada como forma de sobrevivência e de pertencimento, guardado de forma que seja sempre retomada com facilidade, essa lembrança dificilmente será esquecida, por causa da presença material, símbolos de outras existências.  


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