quinta-feira, 6 de novembro de 2025

 CHUVA

A primeira coisa da qual eu me lembro é da chuva. Somente a chuva, aquele que caía do telhado direto no chão de terra e fazia com que subisse aquele cheiro inconfundível de infância que todo mundo tem. Até mesmo quem já nasceu em apartamento sabia o que era aquele cheiro.
Naquele dia não havia chovido, o sol já ultrapassava as frestas das cortinas e os pássaros aquele dia já mostravam que o sortudo do dia era eu para receber seu mais lindo coral. Não era para ser um dia tão maravilhoso, levantei-me e escancarei as cortinas e aquela cegante rajada de luz branca invadiu minhas pupilas deixando-me cego por alguns minutos, com rapidez levei minhas mãos ao rosto, passei a ver o dia por entre meus dedos.
Lá embaixo o dia seguia como uma quinta-feira de sempre, alguns carros - poucos carros - passavam como de costume, os outros homens - milhares deles - seguiam em seus passos firmes sobre a calçada, levavam em suas mentes os problemas do trabalho, os problemas de casa, política, religião. O automático estava no ajeitar do nó da gravata, na olhada nas horas dos relógios, estava naquele dia.
Vou ao banheiro, dou uma cagada. Vou a cozinha e quase faço outra cagada, me contento com um pão queimado, bacon e ovo mexido. Poderia dizer que o dia seria muito longo. Penso nas várias maneiras de como evitar aquele dia. Penso na mais fácil delas. Fumo um baseado, ponho uns sons naturais no IPod e começo a meditar em Lótus, recebendo energias vitais para meu engrandecimento espiritual. O tempo para. Eu senti em mim. Abro os olhos e toda a minha rua está parada. Carros e homens param no tempo. Alguns pássaros tem seus voos paralisados.
E eu lembrava da chuva, que quando novo também parava diante de mim. Eu realmente adorava a chuva. Por isso eu também parava minha rua. Passava horas encarando homem por homem, tentando ver em seus olhos as respostas de suas aflições. A causa das suas vidas tão pequenas e seus egos tão enormes. Os porquês de tantas divisões, de solidão, de tanta pressa.
Por isso eu sempre fazia questão de lembrar da chuva. Até hoje ela não havia deixado de cair em cabeça nenhuma. Nem sabíamos, mas tínhamos tanto para aprender com ela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

  TEMPO Cheguei ao fundo do poço. E daqui posso ver seus olhos. Eles são tomados por uma extrema alegria. Cada degrau até aqui foi construíd...